quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Deleuze, Filosofia e Educação: Entrevista com Sílvio Gallo

Entrevista com Sílvio Gallo 

Por Miguel Ângelo O. do Carmo 

Deleuze, Filosofia e Educação

Sílvio Gallo, professor da Universidade Metodista de Piracicaba e da Unicamp. Atualmente mora em Campinas, terra natal. Estudioso da chamada “educação anarquista”, vem analisando as implicações do pensamento deleuziano na educação. Aqui, um pouco do seu pensamento a respeito da relação Deleuze/Filosofia/Educação. Publicou, além de vários artigos, Pedagogia do Risco (Papirus Editora), Educação Anarquista: um paradigma para hoje (Editora Unimep). No prelo, Deleuze e Educação (Editora Autêntica). Aguardemos...  

MIGUEL ÂNGELO O. do CARMO - Tenho acompanhado, já algum tempo, mesmo que com certa distância, suas publicações e seu trabalho sobre Deleuze e a educação. Mas, antes, você mergulhou nos chamados filósofos anarquistas, o que resultou em uma obra significativa para o repensar contemporâneo educacional (Educação Anarquista: um paradigma para hoje). Fale-me um pouco deste paradigma. Que discussões a visão educacional anarquista pode trazer em relação ao neoliberalismo em que se encontra a escola de hoje?

SILVIO GALLO - O Anarquismo constituiu-se como uma crítica radical ao Estado e ao status quo capitalista, sem nenhum desejo de jogar o jogo do capital (chame-se ele democracia, livre mercado ou seja o que for) e, portanto, como uma filosofia marginal. Não é de se estranhar, pois, que tenha sido deixada à margem pelos poderes instituídos, sejam eles da política de Estado, da mídia, das universidades. No entanto, penso que tanto as teorias anarquistas quanto suas experiências com escolas libertárias tenham muito a nos dizer, ainda hoje e - talvez - sobretudo hoje. Detendo-me apenas no aspecto que você cita, temos hoje uma oposição entre ensino público ou ensino privado, com franca deterioração do ensino público (nos diversos níveis, mas talvez com mais intensidade no ensino superior, ao menos no caso do Brasil), articulada com um amplo crescimento do ensino privado. Se defendemos a privatização, fazemos o jogo do neoliberalismo; se ficamos na defesa da educação pública, perdemos cada vez mais terreno neste confronto desigual. Mas temos aqui um problema de fundo: em geral, ensino público é compreendido como ensino público estatal. Ora, desde o século dezenove que os anarquistas criticaram essa necessária mediação do Estado com a esfera pública. Podemos pensar num ensino público não-estatal, não mediado pelo Estado. E foram mais longe: denunciaram a perspectiva ideológica de toda educação gerida pelo Estado, que ensinará apenas aquilo que lhe é conveniente, desprezando o demais, e mesmo impedindo acesso a estes outros saberes e práticas. Denunciaram também o fato de que somos nós, a população, que financiamos a educação, através dos impostos (isto é, o ensino público não é gratuito, como se afirma); por que, então, aceitar essa mediação do Estado? Assim, as experiências anarquistas de escola foram instituições públicas, pertencentes à comunidade, mas sem a interferência do Estado. Financiadas pela própria comunidade, gerida pela própria comunidade. Penso que elas trazem um novo elemento para nosso debate contemporâneo e, por isso, merecem ser resgatadas.
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MAOC - Nesse jogo de luta contra a privatização dos processos de ensino, contra esse entorpecimento da criação educacional, Deleuze se torna um filósofo muito importante. Parece-me que a grande definição de filosofia, dada por Deleuze e Guattari, traz um deslocamento no modo tradicional de se produzir conhecimento, ou seja, uma radicalização na atividade educacional como um todo. Afinal, a partir disso, nessa luta, é possível “um pouco de possível”?

SG - É, penso que na existência humana a utopia é fundamental. Se não assumirmos a perspectiva de algo, por mínimo que seja, é possível em termos de ação presente e construção do futuro, só nos resta lavar as mãos e deixar que o mundo siga seu giro, ou então nos suicidarmos, pondo fim a essa falta de perspectivas. Sobretudo na atividade educacional, se sigo fazendo um trabalho de sala de aula, se sigo pensando filosoficamente a educação, é porque confio na possibilidade de transformação efetiva de nossas vidas através da micropolítica do cotidiano. E aqui, nessa atividade de militância, daquilo que eu chamaria - parafraseando Deleuze e Guattari - de uma “educação menor”, aquela que se faz na sala de aula, para além e para aquém de toda e qualquer política educacional, a produção conceitual deleuzeana parece-me interessante. Parece ser potencializadora e efetivamente criadora, para aqueles que buscam uma prática educativa aberta às diferenças, que invista na produção de singularidades, na contramão dos processos de subjetivação (leia-se massificação) levados a cabo pela poderosa máquina capitalística.
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MAOC - Certa vez, citou-se Deleuze: “Existem métodos para o ensinar, mas não para o aprender”. Isso remete-nos a entender o processo educativo como um processo de auto-avaliação, exercício anterior à própria avaliação. Como você vê a educação, totalmente assentada na avaliação?

SG - A educação tem sido, desde suas origens, um processo social de transmissão da cultura. Ora, parte-se então do princípio de que alguém transmite e alguém recebe essa transmissão; é preciso controlar esse processo, o que é feito através da avaliação. Numa sociedade de dominação e exploração, infelizmente a única realidade histórica que conhecemos, a avaliação aparece como um instrumento de controle social, de regular quem aprende o que e como, com que propósito. Foucault, por exemplo, desvendou os mecanismos de funcionamento da avaliação, dos exames, numa sociedade disciplinar. Deleuze, por sua vez, insinuou que os instrumentos de avaliação contínua e formação permanente, parte dos discursos educacionais hegemônicos hoje, são decorrentes daquilo que ele chamou de “sociedades de controle”, que sucederiam as “sociedades disciplinares” estudadas por Foucault. Podemos dizer, então, que a educação hoje, cujos processos de ensino e aprendizagem estão completamente assentados na avaliação, cumprem suas funções precípuas de disciplinamento e de controle. Uma educação para a singularidade, algo próximo daquilo que Nietzsche, ainda no século dezenove, chamou de um “educar-se a si mesmo”, por outro lado, lida com o aprendizado que pode ser auto-avaliado, mas não avaliado externamente por um agente exógeno (o professor). Isso, evidentemente, rompe com a avaliação tal como a conhecemos até aqui e rompe com os mecanismos disciplinares e de controle dos processos educativos com os quais lidamos cotidianamente.
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MAOC - Deleuze é comumente conhecido como um “filósofo da diferença”, assim como Foucault, Lyotard, Derrida, etc. -- todos descendentes marginais de Nietzsche. No entanto, a “filosofia da diferença”, com todas as suas influências, ainda é pouco trabalhada nos departamentos universitários -- e também na educação. Afinal, o que é filosofia da diferença e por que essa “resistência” (não sei se a melhor palavra seria essa) acadêmica para com a mesma?

SG - Não sei se podemos afirmar que haja uma resistência acadêmica a uma “filosofia da diferença”, se quisermos chamá-la assim. Penso que haja mais desconhecimento, em alguns locais, do que resistência. Mas o fato é que essa filosofia da diferença, seguindo os desafios lançados por Nietzsche, sobretudo em Genealogia da Moral, tem se dedicado a produzir uma filosofia na contramão da tradição filosófica, que privilegiou e privilegia o mesmo, o uno, o fundamento. A filosofia da diferença abandona a busca por qualquer essência, por qualquer fundamento, seja em que registro metodológico for. Numa vertente norte-americana, em que os filósofos que você citou são muito bem recebidos em diversos espaços acadêmicos, fala-se na filosofia da diferença como uma das “correntes” de um “pós-modernismo”. Penso que essa ânsia ianque de rotular, de colocar uma etiqueta para que o produto seja mais vendável, mais complica do que ajuda. Ao rotular, os norte-americanos promovem um apagamento das diferenças. Mas o fato é que nas academias brasileiras há um “pé atrás” com essa onda de pós-modernismo e, na medida em que a filosofia da diferença é apresentada como parte dele, ela também acaba sendo vista com reservas. Mas, repito, parece-me que as reservas devem-se mais a um desconhecimento. Por outro lado, penso que tem crescido a presença destes filósofos nos meios universitários brasileiros. Temos tido uma série de congressos e simpósios para estudar e disseminar as obras de Nietzsche, de Foucault, de Deleuze; e muitos deles têm sido publicados em forma de livro, de modo que a literatura hoje disponível não é pequena. Esse processo acaba fluindo para o campo da educação, a meu ver em duas vertentes. Uma vertente é a do modismo. Infelizmente, a educação é um campo onde os modismos proliferam, e há pessoas que trazem a filosofia da diferença para educação para vendê-la como mais um produto, mais uma solução para todos os males. E não é incrível que haja quem compre. Nessa linha, muito próxima daquela perspectiva norte-americana que citei anteriormente, acho que se faz mais um desserviço, tanto para a educação quanto para a filosofia. Mas há uma outra vertente, de pessoas que estão seriamente trabalhando esses filósofos e as potencialidades educativas de sua obra, voltadas para uma educação para as singularidades.
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MAOC - Em um texto, você afirma que a filosofia deleuziana é “uma constante atenção ao mundo e ao tempo presente”. O tema do atual, do acontecimento, parece ser uma questão importante para a educação e, no entanto, tem sido desprezada como mostra as várias práticas educacionais que encontramos por aí. Baudelaire dizia: “Não tens o direito de desprezar o presente”. O que estamos deixando de lado ao desprezar o tempo presente?

SG - Desprezar o presente significa desprezar a própria vida. Você citou Baudelaire, quero citar Drummond, no poema Mãos Dadas:
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Vivemos no presente; não vivemos nem no passado nem no futuro. Qualquer filosofia que despreze o presente está desprezando a vida. Da mesma forma, a educação não pode desprezar o presente. Não tenho o direito de educar para o passado, nem mesmo de educar para o futuro. É preciso educar para a vida, e a vida é um eterno presente. Precisamos tomar a educação como espaço de acontecimentos, como imanência, se queremos dar atenção à vida.
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MAOC - Essa questão do tempo presente, do instante, me parece muito importante no processo educacional e, por vias tradicionalmente metódicas, tem-se perdido o caráter do “risco”, do arriscar. A “pedagogia do risco”, ou pedagogia anarquista, seria uma crítica ao método pedagógico em geral? Ou melhor: que problemas o método escolar tradicional traz para a prática da criatividade na educação?

SG - Viver é arriscar; segurança só na morte. Aprendi isso muito jovem, lendo Utopia e Paixão, do Roberto Freire. Essa questão acabou atravessando muita leitura da filosofia e minha leitura da educação. Como afirmei antes, não consigo conceber uma filosofia que não afirme a vida e uma educação que não afirme a vida, com outras palavras, uma filosofia que não seja uma aventura do pensamento (e toda aventura implica em risco, mas por outro lado a segurança do mesmo não leva a lugar algum), uma educação que não seja um investimento na liberdade, na singularidade. A “pedagogia do risco”, como gosto de chamar a pedagogia anarquista, inspirado em Roberto Freire, parece-me que se coloca na contramão dessa “pedagogia da segurança” que são os métodos educacionais em geral. Como segurança, visando a segurança, buscando a segurança, as escolas matam a criatividade, acabam com vida, pois abrir-se ao novo é arriscar-se sempre na corda bamba, à beira do abismo, sem nenhuma rede de proteção. É preciso abrir-se ao possível, ao ainda não, ao impensado e ao impensável, e tudo isso é arriscado. Os métodos, as avaliações, os variados instrumentos de controle, são tentativas de conter as diferenças, barrar as singularidades, massificar, dominar. Mas, felizmente, a vida escapa, a vida é uma multiplicidade de linhas de fuga, e há aqueles que conseguem singularizar. O investimento numa “pedagogia do risco”, numa “filosofia da diferença”, vai na direção de potencializar e multiplicar essas linhas de fuga. Fazer com que as diferenças e as singularidades vazem por todos os poros.
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MAOC - Para terminar. No momento, algum trabalho em andamento?
SG - Muitos, felizmente. Sigo com minhas atividades de sala de aula, que concebo como resistência e militância. Investimento em linhas de fuga, mesmo num sistema institucional fechado. E tenho lido e escrito algumas coisas, tenho pensado na problemática do ensino da filosofia, a qual tenho me dedicado nos últimos anos, e ao estudo da filosofia francesa contemporânea, sobretudo em Deleuze e Foucault, permeados por Nietzsche, buscando suas potencialidades para uma filosofia da educação. Dentre os projetos que estou finalizando, destacaria um pequeno livro que deve ser publicado pela Editora Autêntica, intitulado Deleuze e Educação, que pretende apresentar as principais linhas da filosofia de Deleuze e suas possíveis implicações no campo da educação.
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Fonte: Verbo 21. Cultura e Literatura: <http://www.verbo21.com.br/v5/>

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