quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

CONHECIMENTO, TRANSVERSALIDADE E CURRÍCULO

CONHECIMENTO, TRANSVERSALIDADE E CURRÍCULO
Autor: Sílvio Gallo

No ensino contemporâneo, sofremos da excessiva compartimentalização do saber. A organização curricular das disciplinas coloca-as como realidades estanques, sem interconexão alguma, dificultando para os alunos a compreensão do conhecimento como um todo integrado, a construção de uma cosmovisão abrangente que lhes permita uma percepção totalizante da realidade.
Uma das tentativas de superação desta fragmentação tem sido a proposta de se pensar uma educação interdisciplinar, isto é, uma forma de se organizar os currículos escolares de modo a possibilitar uma integração entre as disciplinas, permitindo a construção daquela compreensão mais abrangente do saber historicamente produzido pela humanidade.
As propostas interdisciplinares, porém, têm apresentado limites muito estreitos, pois esbarram em problemas básicos como, por exemplo, a formação estanque dos próprios professores, que precisam vencer barreiras conceituais para compreender a relação de sua própria especialidade com as demais áreas do saber.
Penso, porém, que a questão é ainda mais complexa e que necessita de uma análise histórico-filosófica da produção do conhecimento, para que seja possível chegar-se a conclusões de maior validade. É o que me proponho a iniciar com este trabalho.

1. Uma Cartografia do Saber
Em seu afã de conhecer o mundo, o homem produz tecnologias de conhecimento, isto é, aparatos, mecanismos, que permitam que examine os aspectos da realidade que deseje transformar em objeto de estudo. Sem tais tecnologias, não seria possível o conhecimento ou, pelo menos, seu desenvolvimento dar-se-ia de forma muito mais lenta. Tais tecnologias são produzidas historicamente, de acordo com as possibilidades e problemas de cada momento. Por outro lado, o uso de tais tecnologias influi sobre o próprio saber que se produz, definindo-o num campo próprio a tal tecnologia, do qual nem sempre é possível escapar. Pierre Lévy coloca a questão de forma bastante clara:
“As tecnologias intelectuais desempenham um papel fundamental nos processos cognitivos, mesmo nos mais cotidianos; para perceber isto, basta pensar no lugar ocupado pela escrita nas sociedades desenvolvidas contemporâneas. Estas tecnologias estruturam profundamente nosso uso das faculdades de percepção, de manipulação e de imaginação. Por exemplo: nossa percepção da cidade onde vivemos muda dependendo se costumamos ou não consultar seus mapas. Muitas vezes, os métodos para resolver certos problemas são incorporados nos sistemas de representações que a cultura nos oferece, como é o caso, por exemplo, na notação matemática e nos mapas geográficos.”[1]
Nessa mesma obra, Lévy delimita os “três tempos do espírito”, os três grandes momentos da história do conhecimento humano marcados por suas tecnologias específicas: o polo da oralidade primária, característico do momento civilizatório em que a humanidade ainda não dominava as tecnologias da escrita e o conhecimento era transmitido através da palavra, momento este dominado por um conhecimento que costumamos chamar de mitológico; o polo da escrita, com todo o impacto que essa tecnologia gerou sobre o saber humano, resultando na constituição da Filosofia e da(s) Ciência(s); e, por fim, o polo mediático-informático, no qual estamos adentrando a partir da segunda metade deste século vinte e que já nos permite vislumbrar assombrosas possibilidades para o conhecimento, dada a variedade e velocidade que possibilita.
Cada um destes três pólos apresenta características próprias e diferentes impactos sobre o conhecimento, sobre as tecnologias que utiliza e sobre os saberes que pode desencadear. Limitando-nos aos aspectos que dizem respeito a nosso tema, podemos afirmar que a oralidade engendra um saber do tipo narrativo, baseado na ritualidade; a escrita, por sua vez, apresenta um saber teórico baseado na interpretação, enquanto que a informática possibilita um saber operacional baseado na simulação (através de modelos ou previsões)[2].
O saber baseado na tecnologia da escrita - praticamente todo o saber da história da humanidade - é marcado, assim, pelo viés teórico da interpretação da realidade, fundando uma noção de verdade que diz respeito à adequação da idéia à coisa mesma que a interpreta. A própria noção que temos do conhecimento hoje, e de sua forma de construção, está marcada, assim, pela tecnologia da escrita e pelas conseqüências daí advindas.
Na atividade de interpretação da realidade, o ser humano construiu  todo o arcabouço de conhecimento de que dispomos. Inicialmente circunscrito ao campo da Filosofia, tal saber cresceu tanto a ponto de começar a ramificar-se, dando origem a novos campos e áreas do conhecimento. Essa especialização deu-se através de uma disciplinarização, ou seja, da delimitação de campos específicos para cada forma de se abordar um determinado aspecto da realidade, cada um deles constituindo-se numa disciplina específica e independente.
A palavra disciplina apresenta, porém, um duplo sentido: tanto induz à delimitação de um campo específico como à hierarquização e ao exercício do poder. O processo de disciplinarização do saber já foi extensamente analisado por Foucault, tanto em seu aspecto de produção/organização em As Palavras e as Coisas, quanto no aspecto de hierarquização política, em Vigiar e Punir. Em ambos os casos, fica explícita a íntima relação do saber organizado em disciplinas - Foucault chega a falar, n’A Arqueologia do saber, em arquivo - com as tecnologias intelectuais suscitadas pela escrita.
Tanto a epistéme clássica, fundada na semelhança, quanto a moderna, baseada na representação[3], demandam uma racionalidade operativa analítica, isto é, que opera pela divisão do campo em sub-campos menores, que podem ser mais facilmente abarcados e, assim , entendidos, representados etc. Ora, a constituição da ciência moderna dá-se no contexto desta racionalidade operativa e, portanto, a disciplinarização deve-se a ela.  Devemos ter claro, portanto, que a disciplinarização não é um fato natural, mas, ao contrário, fruto da aplicação de um arsenal tecnológico de conhecimento sobre a realidade, que acaba por circunscrever quaisquer possibilidades de novos saberes[4]. Em outras palavras, uma vez que modernamente o conhecimento tenha sido produzido de forma compartimentalizada, novos saberes acabam já circunscritos a tal ou qual compartimento, ou mesmo ensejando novos compartimentos.
Para a educação, os reflexos da disciplinarização que nos mostra essa cartografia do saber são imediatos e profundos. Didaticamente, a organização do conhecimento em disciplinas, que cristaliza-se nos currículos escolares, facilita o acesso dos estudantes a esses saberes. Tanto é assim que toda a estrutura burocrática escolar está montada sobre essa compartimentalização. Nesta perspectiva, cada professor é um arquivista especializado numa disciplina, tendo a função de possibilitar aos alunos o acesso às informações ali contidas. Por outro lado, temos o efeito pernicioso da compartimentalização: os estudantes - e mesmo os professores - não são capazes de vislumbrar qualquer possibilidade de interconexão entre as várias gavetas dos arquivos.
A noção de interdisciplinaridade surgiu para proporcionar esse trânsito por entre os vários compartimentos do saber contemporâneo, possibilitando um conhecimento mais abrangente porque mais interativo. Para Hilton Japiassu, trata-se de buscar um remédio para essa patologia do saber que é a fragmentação em disciplinas estanques[5]. Muito já foi pensado e escrito sobre as possibilidades do trabalho interdisciplinar, falando-se inclusive em muitas perspectivas, como multidisciplinaridade, transdisciplinaridade, interdisciplinaridade linear, cruzada, unificadora, estrutural etc. etc.[6]  Devemos, entretanto, colocar a seguinte questão: a proposta interdisciplinar dá realmente conta de superar a histórica compartimentalização do saber? Para respondê-la, é necessário que façamos uma incursão pela teoria do conhecimento e por seus paradigmas.

2. O Conhecimento: paradigma arborescente versus paradigma rizomático
A metáfora tradicional da estrutura do conhecimento é a arbórea: ele é tomado como uma grande árvore, cujas extensas raízes devem estar fincadas em solo firme (as premissas verdadeiras), com um tronco sólido que se ramifica em galhos e mais galhos, estendendo-se assim pelos mais diversos aspectos da realidade. Embora seja uma metáfora botânica, o paradigma arborescente representa uma concepção mecânica do conhecimento e da realidade, reproduzindo a fragmentação cartesiana do saber, resultado das concepções científicas modernas.
Vejamos. O tronco da “árvore do saber” seria a própria Filosofia, que originariamente reunia em seu seio a totalidade do conhecimento; com o crescimento progressivo da “árvore”, adubada intensamente pela curiosidade e sede de saber própria do ser humano, ela começa a desenvolver os galhos das mais diversas “especializações” que, embora mantenham suas estreitas ligações com o tronco - nutrem-se de sua seiva e a ele devolvem a energia conseguida pela fotossíntese das folhas em suas extremidades, num processo de mútua alimentação/fecundação - apontam para as mais diversas direções, não guardando entre si outras ligações que não sejam o tronco comum, que não seja a ligação histórica de sua genealogia. Para ser mais preciso, as ciências relacionam-se todas com seu “tronco comum” - pelo menos no aspecto formal e potencialmente -, embora não consigam, no contexto deste paradigma, relacionarem-se entre si.
O paradigma arborescente implica numa hierarquização do saber[7], como forma de mediatizar e regular o fluxo de informações pelos caminhos internos da árvore do conhecimento.
“Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significação e de subjetivação, autômatos centrais, assim como memórias organizadas. Os modelos correspondentes são aqueles em que um elemento não recebe suas informações senão de uma unidade superior, e uma afetação subjetiva, de ligações preestabelecidas. Isso fica claro nos problemas atuais da informática e das máquinas eletrônicas, que conservam ainda o mais velho pensamento, na medida em que confere o poder a uma memória ou a um órgão central.”[8]
Mas será, de fato, que o pensamento e o conhecimento seguem a estrutura proposta por um paradigma arborescente? Não será tal paradigma um modelo composto posteriormente e sobreposto ao conhecimento já produzido, como forma de abarcá-lo, classificá-lo e, assim, facilitar o acesso a ele e seu domínio, passando mesmo a determinar a estrutura de novos conhecimentos a serem criados? Se assim for, não seria razoável conjeturar que o pensamento procede - ou possa proceder - de outra maneira, menos hierarquizada e mais caótica? Não seria razoável supor-se que o paradigma arborescente seja outro fruto das tecnologias de conhecimento produzidas no contexto do polo da escrita, de que fala Lévy, circunscrevendo o conhecimento produzido neste contexto?
Gilles Deleuze e Félix Guattari apontam com uma possível resposta:
“O pensamento não é arborescente, e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada. Aquilo a que chamamos, injustamente, ‘dendritos’ não asseguram uma conexão dos neurônios num tecido contínuo. A descontinuidade das células, o papel dos axônios, o funcionamento das sinapses, a existência de micro-fendas sinápticas, o salto de cada mensagem por sobre essas fendas, fazem do cérebro uma multiplicidade que mergulha, em seu plano de consistência, num sistema de incerteza probabilística, uncertain nervous system.”[9]
De fato, numa obra posterior, os autores reafirmam a intimidade caótica do funcionamento cerebral, cada vez mais posta às claras pela ciência contemporânea:
 “Os paradigmas arborizados do cérebro dão lugar a figuras rizomáticas, sistemas, acentrados, redes de autômatos finitos, estados caóides. Sem dúvida, este caos está escondido pelo esforço das facilitações geradoras de opinião, sob a ação dos hábitos ou dos modelos de recognição; mas ele se tornará tanto mais sensível, se considerarmos, ao contrário, processos criadores e as bifurcações que implicam. E a individuação, no estado de coisas cerebral, é tanto mais funcional quanto não tem por variáveis  as próprias células, já que essas não deixam de morrer sem renovar-se, fazendo do cérebro um conjunto de pequenos mortos que colocam em nós a morte incessante. Ela apela para um potencial que se atualiza sem dúvida nas ligações determináveis que decorrem das percepções mas, mais ainda, no livre efeito que varia segundo a criação dos conceitos, das sensações ou das funções mesmas.”[10]
De fato, quando ingressamos num novo polo, aquele marcado pelas tecnologias da mídia e da informática, novas perspectivas começam a se apresentar, embora ainda turvadas pelas brumas da anterior[11]. Uma primeira manifestação foi com a ecologia, ciência que já não pode ser inserida no contexto da disciplinarização clássica e que rompe com as “gavetas” de vários arquivos, surgindo na intersecção de vários campos, como a Biologia, a Geografia, a Ciência Política, a Sociologia e mesmo a Filosofia. Parece-me que, para pensar essa nova realidade, é necessária a introdução de um novo paradigma de conhecimento.
Na introdução à obra Capitalisme et Schizophrènie: Mille Plateaux, publicada na França em 1980,  Gilles Deleuze e Félix Guattari apresentam a noção de rizoma. Os autores estão tratando da questão do livro e procuram contrapor um paradigma rizomático ao paradigma corrente, que vê o livro como uma raiz: “a árvore é a imagem do mundo ou melhor, a raiz é a imagem da árvore-mundo”[12]. A perspectiva arbórea remete à unidade: o livro é resultado de uma ramificação que, em última instância, pertence sempre ao mesmo. Usam a metáfora matemática do fractal: aquilo que assemelha-se a uma multiplicidade revela-se, ao ser melhor analisado, como o resultado de uma reprodução ao infinito  de uma mesma única forma. O rizoma, por outro lado, remete-nos para a multiplicidade.
A metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea, tomando como paradigma imagético aquele tipo de caule radiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas em meio a pequenos bulbos armazenatícios, colocando em questão a relação intrínseca entre as várias áreas do saber, representadas cada uma delas pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que se entrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexo no qual os elementos remetem necessariamente uns aos outros e mesmo para fora do próprio conjunto.
O paradigma rizomático é regido por seis princípios básicos[13]:
a. Princípio de conexão: qualquer ponto de um rizoma pode  ser/estar conectado a qualquer outro; no paradigma arbóreo, as relações entre pontos precisam ser sempre mediatizadas obedecendo a uma determinada hierarquia e seguindo uma “ordem intrínseca”.
b. Princípio de heterogeneidade: dado que qualquer conexão é possível, o rizoma rege-se pela heterogeneidade; enquanto que na árvore a hierarquia das relações leva a uma homogeinização das mesmas, no rizoma isso não acontece.
c. Princípio de multiplicidade: o rizoma é sempre multiplicidade que não pode ser reduzida à unidade; uma árvore é uma multiplicidade de elementos que pode ser “reduzida” ao ser completo e único árvore. O mesmo não acontece com o rizoma, que não possui uma unidade que sirva de pivô para uma objetivação/subjetivação: o rizoma não é sujeito nem objeto, mas múltiplo. “As multiplicidades são rizomáticas, e denunciam as pseudo-multiplicidades arborescentes”[14].
d. Princípio de ruptura a-significante: o rizoma não pressupõe qualquer processo de significação, de hierarquização. Embora seja estratificado por linhas, sendo, assim, territorializado, organizado etc., está sempre sujeito às linhas de fuga que apontam para novas e insuspeitas direções. Embora constitua-se num mapa, como veremos a seguir, o rizoma é sempre um rascunho, um devir, uma cartografia a ser traçada sempre e novamente, a cada instante.
e. Princípio de cartografia: o rizoma pode ser mapeado, cartografado e tal cartografia nos mostra que ele possui entradas múltiplas; isto é, o rizoma pode ser acessado de infinitos pontos, podendo daí remeter a quaisquer outros em seu território. O paradigma arborescente remete ao mesmo porque “toda a lógica da árvore é uma lógica da cópia, da reprodução”[15]. O rizoma, porém, enquanto mapa, possui sempre regiões insuspeitas, uma riqueza geográfica pautada numa lógica do devir, da exploração, da descoberta de novas facetas.
f.  Princípio de decalcomania: os mapas podem, no entanto, ser copiados, reproduzidos; colocar uma cópia sobre o mapa nem sempre garante, porém, uma sobreposição perfeita. O inverso é a novidade: colocar o mapa sobre as cópias, os rizomas sobre as árvores, possibilitando o surgimento de novos territórios, novas multiplicidades.
Desta maneira, a adoção de um novo paradigma do saber significa, ao mesmo tempo, uma nova abordagem do próprio conhecimento; para Deleuze e Guattari, o saber passa a ser uma funcionalidade:
 “O conhecimento não é nem uma forma, nem uma força, mas uma função: ‘eu funciono’. O sujeito apresenta-se agora como um ‘ejecto’, porque extrai dos elementos cuja característica principal é a distinção, o discernimento: limites, constantes, variáveis, funções, todos esses functivos ou prospectos que formam os termos da proposição científica.”[16]
O paradigma rizomático rompe, assim, com a hierarquização - tanto no aspecto do poder e da importância, quanto no aspecto das prioridades na circulação - que é própria do paradigma arbóreo. No rizoma são múltiplas as linhas de fuga e portanto múltiplas as possibilidades de conexões, aproximações, cortes, percepções etc. Ao romper com essa hierarquia estanque, o rizoma pede, porém, uma nova forma de trânsito possível por entre seus inúmeros “devires”; podemos encontrá-la na transversalidade.

3. Conclusão: Transversalidade e Currículo
A noção de transversalidade foi desenvolvida ainda no princípio dos anos sessenta por Félix Guattari, ao tratar das questões ligadas à terapêutica institucional, propondo que ela substituísse a noção de transferência:
“Transversalidade em oposição a:
- uma verticalidade que encontramos por exemplo nas descrições feitas pelo organograma de uma estrutura piramidal (chefes, subchefes etc.);
- uma horizontalidade como a que pode se realizar no pátio do hospital, no pavilhão dos agitados, ou, melhor ainda no dos caducos, isto é, uma certa situação de fato em que as coisas e as pessoas ajeitem-se como podem na situação em que se encontrem.”[17]
Podemos, assim, tomar a noção de transversalidade e aplicá-la ao paradigma rizomático do saber: ela seria a matriz da mobilidade por entre os liames do rizoma, abandonando os verticalismos e horizontalismos que seriam insuficientes para uma abrangência de visão de todo o “horizonte de eventos” possibilitado por um rizoma.
As propostas de uma interdisciplinaridade postas hoje sobre a mesa apontam, no contexto de uma perspectiva arborescente, para integrações horizontais e verticais entre as várias ciências; numa perspectiva rizomática, podemos apontar para uma transversalidade entre as várias áreas do saber, integrando-as, senão em sua totalidade, pelo menos de forma muito mais abrangente, possibilitando conexões inimagináveis através do paradigma arborescente. Assumir a transversalidade é transitar pelo território do saber como as sinapses viajam pelos neurônios, uma viagem aparentemente caótica que constrói seu(s) sentido(s) à medida em que desenvolvemos sua equação fractal.
Nesta perspectiva, podemos afirmar que a proposta interdisciplinar, em todos os seus matizes, aponta para uma tentativa de globalização, este cânone do neoliberalismo, remetendo ao Uno, ao Mesmo, tentando costurar o incosturável de uma fragmentação histórica dos saberes. A transversalidade rizomática, por sua vez, aponta para o reconhecimento da pulverização, da multiplicização, para o respeito às diferenças, construindo possíveis trânsitos pela multiplicidade dos saberes, sem procurar integrá-los artificialmente, mas estabelecendo policompreensões infinitas.
Para a educação, novamente as implicações são profundas. A aplicação do paradigma rizomático na organização curricular da escola significaria uma revolução no processo educacional, pois substituiria um acesso arquivístico estanque ao conhecimento que poderia, no máximo, ser intensificado através dos trânsitos verticais e horizontais de uma ação interdisciplinar que fosse capaz de vencer todas as resistências, mas sem conseguir vencer, de fato, a compartimentalização, por um acesso transversal que elevaria ao infinito as possibilidades de trânsito por entre os saberes. O acesso transversal significaria o fim da compartimentalização, pois as “gavetas” seriam abertas; reconhecendo a multiplicidade das áreas do conhecimento, trata-se de possibilitar todo e qualquer trânsito por entre elas.
O máximo possível para a educação, no contexto do paradigma arborescente, seria a realização de uma globalização aparente - e falsa!- dos conteúdos curriculares. No contexto rizomático, deixando de  lado essa ilusão do Todo, a educação poderia possibilitar a cada aluno um acesso diferenciado às áreas do saber de seu particular interesse. Isso significaria, claro, o desaparecimento da escola como conhecemos, pois romper-se-ia com todas as hierarquizações e disciplinarizações, tanto no aspecto epistemológico quanto no político. Mas possibilitaria a realização de um processo educacional muito mais condizente com as exigências da contemporaneidade.

Bibliografia
DELEUZE, Gilles/ GUATTARI, Félix (1976).  O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.  Rio de Janeiro: Imago.
____ Capitalisme et Schizophrénie: mille plateaux (1980).  Paris: Les Éditions de Minuit.
____ (1977). Kafka: por uma literatura menor.  Rio de Janeiro:Imago.
____  (1992). O que é Filosofia?  Rio de Janeiro:Editora 34.
FAZENDA, Ivani C.A. (1979). Integração e Interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia. São Paulo: Loyola.
____ (1987). Levantando a questão da interdisciplinaridade no ensino; Educação e Sociedade nº 27. São Paulo: Cortez/CEDES.
____ (1991). Práticas interdisciplinares na escola. São Paulo: Cortez/Autores Associados.
FOUCAULT, Michel (1987). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 3ª ed.
____ (1990). As Palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 5ª ed.
____ (1991).  Vigiar e Punir: história da violência nas prisões.  Petrópolis: Vozes,  8ª ed.
____ (1972). Histoire de la Folie à l'Âge Classique.  Paris: Gallimard.
____ (1984). Microfísica do Poder.  Rio de Janeiro: Graal,  4ª ed.
GALLO, Sílvio (1994). Educação e Interdisciplinaridade; Revista de Educação nº 1. Campinas: SINPRO.
GONÇALVES, Francisca S. (1994). Interdisciplinaridade e construção coletiva do conhecimento: concepção pedagógica desafiadora; Educação e Sociedade nº 49. Campinas: Papirus/CEDES.
GUATTARI, Félix (1985).  Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 2ª ed.
____ (1988). O Inconsciente Maquínico: ensaios de esquizo-análise.  Campinas: Papirus.
____ (1992). Caosmose: um novo paradigma estético.  Rio de Janeiro: Editora 34.
GUATTARI, Félix/ NEGRI, Toni (1985).  Les Nouveaux Espaces de Liberté. Paris: Ed. Dominique Bedou.
GUATTARI, Félix/ROLNIK, Suely (1986). Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.
JAPIASSU, Hilton (1976). Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago.
____ (1988).  Introdução ao Pensamento Epistemológico.  Rio de Janeiro: Francisco Alves, 5ª ed.
LÉVY, Pierre (1993). As Tecnologias da Inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34.
MACHADO, Roberto (1982).  Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Foucault.  Rio de Janeiro: Graal.
PEREIRA, Maria Clara I. et alii (1991). A interdisplinaridade no fazer pedagógico; Educação e Sociedade nº 39. Campinas: Papirus/CEDES.


Prof. Dr. Sílvio Gallo
Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP
Departamento de Filosofia
R. Rangel Pestana, 762  - Caixa Postal 68
13.400-901 Piracicaba/SP
(0194) 33 5022, ramal 370
FAX (0194) 22 8204

R. João Oliveira Algodoal, 399/ap. 38
13.417-430  Piracicaba/SP
(0194) 26 3315


*  Este artigo é uma primeira tentativa de articulação de leituras e idéias que venho desenvolvendo na pesquisa para minha tese de livre docência.
[1] LÉVY, 1993:160.
[2] Cf. LÉVY, op. Cit., quadro recapitulativo à página 127.
[3] Cf. FOUCAULT, 1990.
[4]Ver a noção de epistéme que Foucault desenvolve em As Palavras e as Coisas; sobre ela, Roberto Machado escreveu que "Epistémê não é sinônimo de saber; significa a existência necessária de uma ordem, de um princípio de ordenação histórica dos saberes anterior à ordenação do discurso estabelecida pelos critérios de cientificidade e dela independente. A epistémê é a ordem específica do saber; é a configuração, a disposição que o saber assume em determinada época e que lhe confere uma positividade enquanto saber"(1982:148-149).
[5] Ver JAPIASSU:1976.
[6] Ver FAZENDA,1979:26-40.
[7] Lembrar a classificação das ciências positivas de Comte, ou mesmo o “círculo das ciências” de Piaget.
[8] DELEUZE/GUATTARI, 1980:25.
[9] Ibidem:24.
[10] DELEUZE/GUATTARI, 1992:276-277.
[11]Em seu ensaio, já citado, Pierre Lévy aborda as relações da Filosofia, que surge com a tecnologia da escrita, com o Mito, conhecimento que marca o polo anterior, o da oralidade; os próprios escritos platônicos, nos primórdios da utilização da escrita, recorrem à forma do diálogo, isto é, a um traço do polo anterior.
[12] DELEUZE/GUATTARI, 1980:11.
[13] Cf. DELEUZE/GUATTARI, 1980:13-21.
[14] Ibidem:14.
[15] Ibidem:20.
[16] DELEUZE/GUATTARI, 1992:275.
[17] GUATTARI, 1985:93-94.

Nenhum comentário: